3.1. Otimismo teórico: crítica ao pensamento dicotômico
O filósofo Sócrates é considerado não apenas por
Nietzsche, mas por uma gama de intelectuais, como o primeiro sábio que desde a
antiguidade se desvia dos estudos da física e da cosmologia para se dedicar
exclusivamente às questões propriamente humanas. Nesse ponto, a novidade da
análise nietzschiana consiste em sua nova compreensão do homem Sócrates: este,
colocado como responsável por uma ruptura que abalou e abala ainda, de forma
negativa, toda a nossa tradição filosófica e artística; sendo essa ruptura,
segundo Nietzsche, o fim de um belo mundo e o início de um duvidoso iluminismo.
Amante e profundo conhecedor da cultura grega, Nietzsche apontou a forte
influência de Sócrates naquilo que ele denominou como sendo a decadência da
arte grega. Vale lembrar que a questão da decadência artística grega está para
Nietzsche correlacionada à questão geral da decadência humana. Em vez de confiar
no corpo e nos instintos, colocando a razão em primeiro plano Sócrates faz dela
a referência última da realidade do homem, o que consiste em reprimir a
natureza, os sentidos e os instintos, ou seja, Sócrates, com sua forte
influência, consegue transformar a decadência num modelo de humanidade. Vejamos nessa passagem o princípio que nos
leva a tocar com o dedo o coração e a medula da tendência socrática:
Enquanto
em todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a
consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se
crítico e a consciência criadora – é uma verdadeira monstruosidade (...)
pensemos nas consequências das máximas socráticas: a virtude é um saber; só
pecamos por ignorância; o homem virtuoso é feliz. Estas três formas essenciais
do otimismo são a morte da tragédia. (2007c,
p.13)
Pois bem! No final desse trecho Nietzsche denomina
de otimismo o pensamento socrático. Com isso, temos um ponto importante para
ser explorado com atenção a esse respeito: compreender o que Nietzsche entende
por otimismo teórico. A esta altura podemos constatar uma visível recusa pela
parte de Nietzsche contra qualquer hipótese da existência ou compreensão de uma
realidade independente do nosso intelecto: “não
podemos enxergar além de nossa esquina” (2001, p. 248). Nietzsche constatou
que desde o filósofo Parmênides a
filosofia era atravessada pela busca da verdade. Os intelectuais tentavam
decifrar o que eram as coisas em si mesmas. Sócrates, por sua vez, principiou o
que Nietzsche denominou de otimismo teórico partindo da crença de que o homem
pode conhecer o ser, ou até mesmo corrigir o ser. Basta enxergar pelo prisma da
razão. Percebemos aqui que o papel no pensamento socrático é de suma
importância, principalmente ao fundamentar a seguinte “equação socrática de razão = virtude = felicidade: a mais bizarra
equação que existe, e que em especial, tem contra si os instintos dos helenos
mais antigos” (2006, p. 19).
Com isso,
Nietzsche problematiza a primazia racionalista da civilização helênica alegando
que o pensamento na época trágica dos gregos, com toda sua força criativa,
peculiar em seus aspectos conflituosos, abraçava a vida em toda sua
exuberância, ao contrário do mundo composto pelo otimismo socrático. “Com Sócrates – diz ele –, o gosto grego se altera em favor da
dialética: o que acontece aí propriamente? Sobretudo um gosto nobre é vencido;
com a dialética, a plebe se põe em cima”
(ibidem).
Ou seja, o
grande problema de Sócrates nada mais é do que seu sentimento racionalista do
qual todos os filósofos após ele passaram a compartilhar: a vontade de verdade:
A
vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre
veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa vontade de verdade já não
nos colocou! Estranhas, graves, discutíveis questões! Trata-se de uma longa
história – mas não é como se apenas começasse? Que surpresa, se por fim nos
tornamos desconfiados, perdemos a paciência, e impacientes nos afastamos? Se,
com essa esfinge, também nós aprendemos a questionar? Quem, realmente, nos
coloca questões? O que, em nós aspira realmente “à verdade”? (Nietzsche,
2005a, p. 9)
Ora, Sócrates indagava as pessoas acerca dos valores
éticos, virtudes, o que eram essas coisas, de onde vinham, o que valiam os
costumes, e, o que seriam a virtude e o bem. Paulatinamente investigava os
costumes e valores vigentes, a origem e a essência das virtudes, o que
significava uma conduta Boa ou Má, virtuosa ou viciosa, introduzindo então a
ideia de consciência moral: considerando que bastava saber o que é bondade para
que seja bom. Buscando definir o campo no qual valores e obrigações podem ser
delineados, Sócrates teve o mérito de garimpar os valores éticos ou morais da
coletividade cultuados de geração a geração, principiando então a ética ou
filosofia moral.
Por outro lado cometeu um contrassenso quando
cristalizou valores superiores em outro mundo:
Razão
= virtude = felicidade significa tão só: é preciso imitar Sócrates e instaurar
permanentemente, contra os desejos obscuros, uma luz divina diurna – a luz
diurna da razão. É preciso ser prudente, claro, límpido a qualquer preço: toda
concessão aos instintos, ao inconsciente, leva para baixo.... (Nietzsche,
2006, p. 22)
Sócrates,
nesse sentido, representa para Nietzsche a degenerescência da filosofia,
justamente pela distinção de dois mundos. A figura do filósofo Sócrates deve
ser vista nesse momento como referência da crítica de Nietsche para a
metafisica. O objeto da crítica nietzschiana é-nos desvendado nessa nova
roupagem do pensador Sócrates responsável pela dicotomia da metafisica. Uma
passagem do livro Nietzsche: o Filósofo
da Suspeita, de Scarlett Marton, reforça bem essa ideia: Traço essencial de nossa cultura, o dualismo
de mundos foi invenção do pensar metafísico e a fabulação da religião cristã.
Com Sócrates, teve início a ruptura da unidade entre homem e mundo (Marton, op. cit., p. 80).
Com isso chegamos a um dos focos da proposta de
Nietzsche: a superação da metafísica. Dito de outro modo, o equilíbrio, a
elegância, o racionalismo e a harmonia da cultura tiveram como base a metafísica
proposta pelo Sócrates: uma metafisica fundamentada por um pensamento
dicotômico, enraizado na oposição de valores, tendo como referência os valores
superiores – o divino, o verdadeiro, o belo, o bem. Nesse contexto, para
Nietzsche, em Sócrates é palpável à morte da cultura e da civilização gregas.
Ou seja, com Sócrates o homem trágico é substituído pelo homem teórico. Daí a
crítica de Nietzsche acerca do otimismo teórico. De acordo com essa ordem de raciocínio o
antigo mundo com sua gloriosa sabedoria desmorona com o advento do homem
teórico:
Quem
se der conta com clareza de como depois de Sócrates, o mistagogo da ciência,
uma escola de filósofos sucede a outra, qual onda após onda, de como uma
universalidade jamais pressentida de avidez de saber, no mais remoto âmbito do
mundo civilizado, e enquanto efetivo dever para com todo homem altamente
capacitado, conduziu a ciência ao alto-mar, de onde nunca mais, desde então,
ela pôde ser inteiramente afugentada, de como através dessa universalidade uma
rede conjunta de pensamentos é estendida pela primeira vez sobre o conjunto do
globo terráqueo, com vistas mesmo ao estabelecimento de leis para todo um
sistema solar; quem tiver tudo isso presente, junto com a assombrosamente alta
pirâmide do saber hodierno, não poderá deixar de enxergar em Sócrates um ponto
de inflexão e um vértice da assim chamada história universal se substituindo
uma à outra como as ondas, como a ânsia de saber se expandindo nos países mais
longínquos com uma universidade (Nietzsche, 2007c, p. 91-92).
Nessa passagem o que Nietzsche está afirmando é que
todas as escolas filosóficas são diretamente dependentes da revolução socrática.
Que o discurso metafísico tenha conseguido produzir sabedoria válida, ciência e
experiência do mundo isso é inquestionável. Porém, sem perder de vista a
análise da vida, do corpo e os instintos vitais, Nietzsche compreendeu que tudo
que até o momento denominou-se ética vigorou-se pelo contágio absurdo e
insidioso do imaculado conhecimento. Um fanatismo pela razão que no campo da
arte causou a morte da tragédia e no domínio filosófico debilitou a sabedoria
dos grandes filósofos. A razão, faculdade única que conduz ao conhecimento mais
profundo, ao âmago das coisas.
No socratismo nos deparamos com a ilusão de chegar à
conclusão das conclusões enveredados por conceitos e combinações lógicas
desprezando as potências místicas e artísticas por não corresponderem aos
critérios da razão. Nesse contexto, não há lugar para um discurso que não
respeite a frieza e veracidade do racionalismo. Com isso, recusando
categoricamente o otimismo teórico de Sócrates e todo o ditame clássico da
tradição que sempre tratou a vida em um dualismo racionalista, Nietzsche
argumenta que o pensamento grandioso dos filósofos anteriores à influência
racionalista socrática é o mais elevado alcançado pelo homem. Rica em
pensadores que compreenderam a natureza, a época trágica representada nos
dramas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides é a corporficação suprema da tensão
harmônica dos contrários, expressão de um mundo compreendido pela natureza como
princípio dionisíaco: a vida com toda sua exuberância. Sobre essa questão comenta
o professor Osvaldo Giacoia:
É
nesse sentido que os gregos do período trágico seriam exemplares. Eles
pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da existência e as
‘dores do mundo’, sem necessidade de subterfúgios moralistas. Prova disso é a
ferocidade de que dão mostras os combates entre as cidades-estados, assim como
as agruras materiais e espirituais que estavam na base do florescimento da
cultura grega. (2000,
p. 18)
Nietzsche
Uma Compreensão da Cultura do Ocidente
Como Sintoma de Decadência Moral
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Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura > |