1.1. A Falta de sentido histórico e o sentimento de medo
Ora, por moral compreendemos uma estrutura de
valorações. Por valorações, condições de existência ou, como dirá nosso
filósofo em Para além do bem e do mal:
[...] exigências fisiológicas para a
preservação de uma determinada espécie de vida (2005a, p.11). E as valorações puramente humanas estão de uma maneira ou
de outra submetidas a mudanças no decorrer do tempo. Dessa forma Nietzsche
vislumbra o homem como sendo uma entidade histórica em incessante
transformação. Por esse motivo não é prudente falar de essências imutáveis,
muito menos de verdades absolutas.
Assim encontramos o principal defeito dos filósofos
contemporâneos a Nietzsche, segundo ele: a falta de sentido histórico. Uma
falha involuntária de imaginar o homem como uma verdade eterna quando na
verdade este veio a ser.
Nesse contexto, torna-se suspeito ainda todo sentimento
por determinado costume, por ser proveniente das apreciações de juízos morais errôneos,
na maioria das vezes, e por corrermos o risco de perdemos o direito por nosso
juízo quando cegamente confiamos em uma tradição. Seja observado que Nietzsche inclina
seu desprezo para o instinto de escravidão que vigora mediante a postura a que
aderimos de total irreflexão e submissão quando somos guiados pelos
sentimentos, visto que estes tem sua proveniência em juízos morais. E, nessa
mesma dimensão tomada pelo encanto embriagante do costume – hábito, tradição –,
as religiões, ciência e o Estado facilmente fortificam seus alicerces na medida
em que se desenvolvem cultivando seu rebanho, adeptos da indiscutibilidade dos
costumes. Com efeito, compreendemos nessa perspectiva que o encanto derivado do
costume consiste em manter permanentemente na consciência o dever ininterrupto
de servi-lo.
Permanecemos
preponderantemente, durante toda a nossa vida, vítimas dos juízos infantis aos
quais nos habituamos, e isto no que se refere à maneira de julgar nossos
próximos (seu espírito, sua classe, sua moralidade, seu caráter, o que tem de
louvável ou de censurável, prestando homenagem às suas apreciações). (idem, p. 75)
A genialidade particular dessa crítica consiste na facilidade
com que seus argumentos criam uma dimensão corrosiva, instaurando uma
problemática no círculo de possíveis perspectivas do objeto posto em discurso.
Com efeito, o alcance de sua crítica ao costume é devastador na medida em que
ela visa desmistificar as instituições, o Estado, a moral, a filosofia
dogmática, as religiões. Enfim, é inegável a ligação de ambos quando nos
reportamos ao costume.
É visível na história da humanidade as consequências
que pesam sobre aqueles que confrontam a tradição e costumes, denunciando sua
insustentabilidade argumentativa e reflexiva. Temos exemplos deploráveis como a
condenação à prisão perpétua aplicada sobre Galileu Galilei (1564-1642),
tão-somente por afirmar uma determinada doutrina que decerto contrariou as que
vogavam em sua época. Sendo obrigado a recitar sete salmos penitenciais uma vez
por semana ele teve de abjurar, maldizer e detestar a teoria copernicana. E não
menos intrigante, não podemos deixar de citar o pensador holandês Benedictus Spinoza
(1632-1677). Este, excomungado da comunidade judaica por afrontar a tradição da
época em defesa da sua exuberante doutrina de um Deus inteiramente imanente: Deus sive natura. Pensamento polêmico,
de beleza singular, porém um escândalo para a religião do seu tempo. Sendo sua
obra Ética publicada apenas depois de
sua morte. Assim como Nietzsche, Spinoza seguiu sua filosofia criticando os
valores morais transcendentes. Críticas desse gênero que se chocavam
bruscamente com a tradição religiosa. Vale lembrar ainda o trágico fim do
pensador Giordano Bruno. Queimado no mercado de flores de Roma, dentre as
acusações que pesou sobre ele, uma delas foi por defender que Deus estava
presente na natureza; e outra, um escândalo para a época: acreditar na
infinitude do universo.
Poder-se-ia até mesmo dizer que à primeira vista é
mais que gritante a divergência de pensamento de desses intelectuais (Galileu Galilei,
Benedictus Spinoza, Giordano Bruno). Entretanto, o que se torna evidente para
qualquer um que analise as perseguições sofridas por Galileu, Spinoza ou
Giordano foi como os argumentos contra eles se mostraram volúveis e grosseiros
no decorrer do tempo. Tornou-se clara a insustentabilidade dos juízos contra as
figuras desses pensadores, visto que seus crimes foram suas posturas firmes com
as quais não se desprenderam dos seus juízos, não se rendendo a convicções
superadas e falsas. Vale observar que o critério do julgamento na maioria dos
casos expostos pelos juízes não tinha como princípio a veracidade dos fatos,
mas a defesa dos costumes: uma perspectiva moralista.
Cont...
Por Claudio Castoriadis ( Franciclaudio Feliciano de Lima )