quinta-feira, 2 de maio de 2013

Mario Benedetti: MUSAK: música ambiente



“Ao cacete. E gangrena.” Disse assim, textualmente. Um absurdo. Quanto “ao cacete”, ainda vá lá. Apesar de que há maneiras mais claras de dizer isso, você não acha? Mas, “e gangrena”? Estava sentado escrevendo à máquina naquele escritório. Estivera ali escrevendo à máquina, certamente algum comentário sobre basquete. No final do campeonato sempre se faz um balanço da temporada. Não sei pra quê. De todas formas, sempre se conclui o mesmo: os jogadores não são os culpados, mas sim, o técnico. Disse: “Ao cacete”, e eu perguntei: “O que você disse, Oribe? Não porque não tivesse entendido, mas porque o que tinha entendido me parecia um tanto estranho. Então, ele me olhou, ou melhor, fixou o olhar, por cima de minha cabeça, neste calendário, e proferiu o restante: “E gangrena”. A partir de então, ninguém mais pôde detê-lo. “Ao cacete. E gangrena. Ao cacete. E gangrena”. Chamei o Peretti e ele me ajudou. Juntos, o levamos à enfermaria. Não opôs resistência. Suava, e até tremia um pouco. Eu dizia pra ele: “Mas, Oribe, meu velho, que acontece?” E ele com sua cantilena: “Ao cacete. E gangrena”. Depois de quinze anos trabalhando juntos (bem, está certo, vizinhos ao menos, ele esportes , eu policial ), algo assim impressiona. Ainda mais que o Oribe é um cara simpático, expansivo, que está sempre contando até os mais insignificantes detalhes de sua vida. Você vê, acho que conheço cada canto da sua casa e olha que nunca estive lá. Conheço só pela minuciosidade das descrições dele. Posso até fazer um mapa, se você quiser. Posso te dizer o que a mulher dele guarda em cada gaveta do armário, aonde o moleque deixa a mochila da escola e de que cor são as escovas de dente e aonde esconde seus livros sobre marxismo. Sabia que ele é bolche? Quinze anos de intimidade. De repente, isto. 
Um choque para todos, te garanto. Quando contamos pro Varela, ficou pálido e foi vomitar. Abalado, simplesmente, abalado. Laurinha, a telefonista, ficou com os olhos cheios d´água. E eu mesmo, essa noite não toquei na comida. Você vai dizer: não deve ser a primeira vez que um colega do jornal adoece. Claro que não. Isso acontece todos os dias. Hoje um resfriado, amanhã uma úlcera, depois de amanhã uma nefrite, em seguida um câncer. Temos o ânimo preparado para coisas deste tipo. Mas que um cara deixe de escrever à máquina e fique olhando um calendário e comece a dizer: “Ao cacete. E gangrena”, e já não pare mais, isso é algo que nunca aconteceu, pelo menos que eu saiba.Agora presta atenção. Você sabe ao que o Recoba atribui a causa do transtorno? Ao musak , cara. Outro absurdo. Coisa mais inocente, impossível. O Recoba diz que também sai do sério com o musak . O Recoba diz que essa melodia constante, nem próxima nem distante, não deixa ele trabalhar porque tem a impressão de que é como uma droga, um sonífero muito sutil, cujo conteúdo não é exatamente adormecer o organismo, mas amortecer as reações mentais, a capacidade de rebeldia, a vocação de liberdade, sei lá eu. Ele sempre tem um grande discurso preparado sobre o tema. Eu acho que é uma grandessíssima asneira. E digo mais: prefiro mil vezes trabalhar com musak . É tão suave. Inclusive as músicas violentas, como por exemplo, a Rapsódia Húngara e Polonesa, no musak ficam desprovidas de agressividade, e além disso eu acho que sempre acrescentam muitos violinos, e então soam quase quase como um bolero, e isto tem um efeito de bálsamo. A gente se consola. Olha, tem dias que eu chego no jornal com a cabeça estourando, cheio de problemas, confusões de grana, brigas com minha mulher, preocupações com as notas baixas da menina, ultimatos do Banco, e no entanto me sento na escrivaninha e depois de escutar cinco minutos dessa musiquinha que gruda com essas doces melodias, às vezes um pouquinho enjoativas, confesso, mas em geral muito agradáveis, cinco minutos depois me sinto pouco menos que feliz, esquecido dos problemas, e trabalho, trabalho, trabalho, como um robô, nem mais nem menos. De todas formas, não é preciso pensar muito. Um crime sempre é um crime. Para os passionais, por exemplo, eu tenho meu estilo próprio. Não trabalho com lugares comuns nem termos gastos. Nada de cadáver mutilado, nem decúbito dorsal, nem arma do crime, nem retorno ao local do crime, nem representantes da autoridade, nem cruel impulso de um ataque de ciúmes, nada disso. Eu trabalho com metáforas. Não ponho o fato conciso, mas sim a imagem que o sugere. Vou te dar um exemplo. Se um cara mete cinco punhaladas em outro, eu não escrevo como qualquer cronista sem imaginação: “O sujeito lhe pespegou cinco punhaladas”. Isto é fácil demais. Eu escrevo: “Seu semelhante abriu-lhe três talhos de sangue”. Percebe a diferença? Não só acrescento beleza descritiva como também reduzo duas punhaladas, porque, paradoxalmente, assim fica mais dramático, mais humano. Um cara que da cinco punhaladas é um sádico, um monstro, mas um que assesta somente três é alguém que tem limite, é alguém que sente a ferroada da consciência. Claro que eu nunca escrevo: “ferroada da consciência” mas “ânsia que remorde”. Percebe a sutileza? Quer dizer que eu tenho meu estilo. E o leitor reconhece. Bom, nesse sentido o musak , particularmente, me ajuda. E eu me acostumei tanto à sua presença que quando, por qualquer motivo, não funciona, esse dia fico com o estilho achatado, fico sem metáforas. Você percebe? Eu te digo sinceramente que pra mim o caso do Oribe é muito claro. De que ele enlouqueceu, não há dúvida. Mas, o que causou essa loucura? O que que eu posso dizer? Na minha opinião a birutice dele começou com suas leituras marxistas. Porque antes, bem antes da insistência dele em “Ao cacete, e gangrena”, o Oribe foi paulatinamente perdendo o juízo. Até então não me dava conta, mas agora começo a calcular. Por exemplo, quando a Vilma, a cronista da coluna social, elucubrava uma nota de compromisso sobre qualquer festa beneficente, ele assobiava pra dentro e dizia: “eu não sou partidário da caridade, mas sim da justiça social”. O Iturbide o apelidou de Jota Ese, uma brincadeira por essa mania dele de justiça social. Escuta só, escuta só. Agora começou o musak . Hoje, tá* vendo? Está bacana. Que violinos, cara, que violinos! Uma loucura, investir contra a caridade. Você pode me dizer que mal fazem as coroas grã-finas jogando ao rummy beneficente. E outra coisa. Uma noite, quando eu estava descendo até a oficina para montar minha página (como poderia me esquecer: foi nada menos que aquela segunda-feira em que o verme do Capurro, “sujeito inqualificável” escreveram meus colegas, mas eu coloquei “patética escória humana”, atropelou e violentou sur le champ a cunhadinha do senador Fresnedo), ouvi na escada como o Oribe dizia ao Doutor (pasme, ao Doutor): “O problema é que o senhor é oligarca até quando arrota”. Espera aí, você acha que isso é normal? Hoje o musak está tranquilinho como nunca. Deve ser em sua homenagem. Vê se vem me visitar mais vezes. Aposentado e tudo mais, mas isto, heim? Sempre te atrai. Olha só esta cadência. Como pode ser a música a causa do transtorno! Escuta só este clarinete. É a música Night and Day , lembra? Apesar de que acho que não me importa reconhecer ou não a música. O fundamental é que toque. E que te tranquilize. Não te tranquiliza? Claro como a água que foi o marxismo que o enlouqueceu. Da outra vez ele me disse que o esporte era uma anestesia que se aplicava no povo para que não pensasse em coisas mais importantes. Você acha que o futebol é uma anestesia? Escuta só esse trompete. Assim, amortecida, parece que soa dentro do cérebro. E na verdade, eu acho que soa dentro do cérebro. Olha, bem aqui, onde tenho o redemoinho. O que eu posso fazer, sou um fanático do musak e não me envergonho. Um fanático do musak , sim senhor. Escuta só esta guitarra elétrica. Ótima, não? Mas que importa que seja elétrica ou não. Um fanático do musak . Você não? Você não é um fanático? Ah, não! Então, quer saber de uma coisa? Escuta só, escuta só que tremolo. Saber uma coisa? Vá ao cacete. Isso mesmo: ao cacete. E gangrena. Ao cacete. E gangrena. Ao cacete. E gangrena. Ao cacete. E gangrena. Ao cacete. E gangrena.


Tradução

Eleonora Frenkel Barretto

Nota da tradutora

Se destaca a dificuldade de traduzir a linguagem coloquial, pois se trata de um texto escritoque reproduz em grande medida a língua falada em uma situação informal. Diante destacaracterística, a opção da tradução foi preservar a informalidade do texto, para o que foi
necessário fazer algumas mudanças estilísticas e gramaticais, bem como interpretações semânticas. O objetivo final da tradução foi reproduzir na língua de chegada o modo de narrar privilegiado pelo autor na língua original.



Por Claudio Castoriadis

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