A HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ!
Discurso de defesa de Fidel
Castro, por ocasião de seu julgamento pelo ataque ao quartel de Moncoda, em 16
de outubro de 1953.
“A primeira condição da
franqueza e da boa fé num propósito é fazer exatamente o que ninguém faz, ou
seja, falar com absoluta clareza e sem medo. Os demagogos e os políticos
profissionais querem praticar o milagre de estar bem com tudo e com todos,
enganando necessariamente a todos em tudo. Os revolucionários devem declarar
suas idéias com coragem, definir seus princípios e revelar suas intenções para
que nenhuma pessoas se engane, nem amigos nem inimigos...”
(...) “Cuba poderia abrigar
maravilhosamente uma população três vezes maior. Não existe, portanto, razão
para que haja miséria entre seus habitantes. Os mercados deveriam estar
repletos de produtos. As despesas das casas deveriam estar cheias. Todos os
braços poderiam estar produzindo com labor. Não, isso não é concebível. O
inconcebível é que existam homens que durmam com fome enquanto uma polegada de
terra sem semear. O inconcebível é que existam crianças que morrem sem cuidados
médicos. O inconcebível é o fato de 30 por cento de nossos camponeses não
saberem assinar o próprio nome e 99 por cento não conhecerem a história de
Cuba. O inconcebível é a maioria das famílias de nossos campos estarem vivendo
em condições piores que os índios encontrados por Colombo ao descobrir a terra
mais bonita que os olhos humanos já contemplaram...”
(...) “Vou contar-lhes uma
história. Era uma vez uma república. Tinha uma Constituição, suas leis, suas
liberdades. Presidente, Congresso, tribunais. Todo mundo podia se reunir,
associar-se, falar e escrever com inteira liberdade. O governo não satisfazia o
povo, mas este podia mudá-lo, e faltavam apenas poucos dias para fazê-lo. Havia
uma opinião pública respeitada e acatada, e todos os problemas de interesse da
população eram discutidos com liberdade. Havia partidos políticos, (...)
programas polêmicos de televisão, manifestações, e palpitava no povo o
entusiasmo. Esse povo tinha sofrido muito, e se não era feliz queria sê-lo, e
possuía tal direito. Tinha sido enganado muitas vezes, e via o passado com
verdadeiro horror. Acreditava cegamente que esse passado não poderia voltar.
Estava orgulhoso de seu amor à liberdade e vivia convicto de que ela seria
respeitada como coisa sagrada. Sentia uma confiança digna, de que ninguém
ousaria cometer o crime de atentar contra as instituições democráticas. Queria
uma mudança, algo melhor, queria um avanço e os percebia próximos. Toda a sua
esperança estava no futuro.
“Pobre povo! Uma manhã a
população acordou estremecida. Nas sombras da noite, os fantasmas do passado se
haviam conjurado, enquanto ela dormia, e eis que a tinham agarrado pelas mãos,
pelos pés e pelo pescoço. Aquelas garras eram conhecidas, (...), aquelas
botas... não era um pesadelo, tratava-se da horrível realidade: um homem,
chamado Fulgêncio Batista, acabava de combater o terrível crime que ninguém
esperava.
“Aconteceu, então, que um
simples cidadão daquele povo, que desejava acreditar nas leis da república e na
integridade de seus magistrados, a quem vira muitas vezes enraivecer-se contra
os infelizes, procurou o Código de Defesa Social para ver quais castigos previa
a sociedade para o autor de semelhante ato...
(...) “Sem dizer nada a
ninguém, com o código em uma mão e os papéis na outra, o tal cidadão
apresentou-se no antigo casarão da capital, onde funcionava o tribunal
competente, que tinha a obrigação de instaurar processo e punir os responsáveis
por aquele ato, e apresentou um documento em que denunciava os delitos e pedia
para Fulgêncio batista e seus dezessete cúmplices a condenação a 108 anos de
prisão, como previa o Código de Defesa Social, com todas as agravantes de
reincidência, perfídia e ação na calada da noite.
(...) “Senhores juízes: sou eu
aquele humilde cidadão que um dia apresentou-se inutilmente diante dos
tribunais para lhes pedir que punissem os ambiciosos que violaram as leis e
destroçaram as nossas instituições. E agora, quando sou eu o acusado de querer
derrubar esse regime ilegal e restabelecer a Constituição legítima da
república, sou mantido incomunicável numa cela por 76 dias, sem poder falar com
ninguém nem sequer ver meu filho. Sou levado pela cidade entre duas
metralhadoras (...), sou transferido a este hospital para ser julgado em
segredo com toda a severidade e um promotor, com o Código na mão, solenemente,
pede para mim 26 anos de prisão.
“Dirão que aquela vez os
juízes da república não atuaram porque estavam impedidos pela força. Confessem,
então: desta vez também a força os obriga a condenar-me. Da primeira vez não
puderam punir o culpado. Da segunda, terão de castigar o inocente. A donzela da
Justiça é duas vezes violada pela força.
“E quanta impostura para
justificar o injustificável, explicar o inexplicável, conciliar o
inconciliável! Até que decidiram por fim afirmar, como motivo supremo, que o
fato cria o direito. Ou seja, que o fato de ter lançado os tanques e os
soldados à rua, tomando o palácio presidencial, o Tesouro da república, e os
demais edifícios oficiais, e de apontar armas para o coração do povo cria o
direito de governá-lo. Argumento semelhante utilizaram os nazistas que
dominaram os países da Europa e neles instalaram governos ditadores.
“Reconheço e aceito que a
revolução seja fonte de direito. Mas não se poderá chamar nunca de revolução o
assalto noturno, a mão armada, de 10 de março...”
(...) ”Nem no sentido de
modificações profundas no sentido social, nem sequer na superfície do pântano
público moveu-se uma onda que agitasse a podridão reinante. Se no regime
anterior existia politicagem, roubo, pilhagem e ausência de respeito pela vida
humana, o atual regime multiplicou por dez a pilhagem e multiplicou por cem a
falta de respeito pela vida humana.”
(...)”...Como considerar
juridicamente válida a alta traição de um tribunal cuja missão era defender
nossa Constituição? Com que direito mandar para a prisão homens que vieram para
dar seu sangue e sua vida pelo decoro de sua pátria? Isso é monstruoso diante
dos olhos da nação e os princípios da verdadeira justiça!”
(...) “...e a ilha se afundará
no mar antes que consintamos em ser escravos de alguém.”
(...) “Termino minha defesa,
mas não como fazem sempre todos os advogados, pedindo a liberdade do acusado.
Não posso pedi-la enquanto meus companheiros sofrem na ilha de Pinos
ignominiosa prisão. Mandem-me para perto deles a fim de compartilhar a sua
sorte. É concebível que os homens de valor estejam mortos ou presos numa
república em que o presidente é um criminoso e um ladrão.
“Aos senhores juízes, minha
sincera gratidão por terem permitido que eu falasse livremente, sem mesquinhas
coações. Não lhes tenho rancor. Reconheço que em alguns aspectos foram humanos
e sei que o presidente deste tribunal, homem honrado, não pode dissimular sua
repugnância pelo estado de coisas reinante, que faz ditar uma sentença
injusta...
“Quanto a mim , sei que a
prisão será dura como nunca foi para ninguém repleta de ameaças, de provocações
covardes e vis. Mas não temo isso, como não temo a fúria do tirano desprezível
que extinguiu a vida de setenta irmãos meus. Condenem-me, não importa. A
História me absolverá!”
pp. 55-59
Fidel Castro por ele mesmo.
Coleção O Autor Por Ele Mesmo. São Paulo: Editora Martin Claret. 1991.